Desde a década de 1990, o psicólogo paulistano Paulo Cesar Ribeiro Barbosa, professor da Universidade Estadual de Santa Cruz, na Bahia, pesquisa o chá Hoasca, procurando avaliar seus possíveis benefícios no campo da promoção da saúde mental. Ao longo desta trajetória investigativa, Barbosa conseguiu compilar dados e informações sobre os hábitos e a saúde mental de literalmente milhares de sócios da UDV, que residem dentro e fora do Brasil. Seus estudos vêm permitindo apresentar, com crescente precisão, os efeitos positivos à saúde humana do Vegetal, especialmente como fator protetor contra o uso e o abuso de álcool e drogas. Nesta entrevista ao blog UDV Ciência, ele comenta os achados de cada um dos estudos que conduziu com a participação de integrantes da UDV, e o que observou ao longo desta colaboração.
Como você se aproximou do campo de estudos do chá Hoasca?
Durante a minha graduação em ciências sociais na Usp, comecei a me interessar por xamanismo e cursei algumas disciplinas sobre esse assunto. E o xamanismo envolve o uso de técnicas para provocar a alteração de consciência, incluindo o uso de substâncias psicoativas. Me chamou a atenção o uso, por parte desses grupos, da alteração do estado de consciência com objetivos de cura, com fins medicinais. Quis entender mais como isso acontecia, como era esse uso. No final da graduação, fiquei sabendo que existiam grupos religiosos que usavam o chá aqui, no estado de São Paulo. Na sequência, fui cursar o mestrado na área de saúde mental na Unicamp e decidi que ia estudar aqueles grupos. Isso foi ali em 1996, 1997.
Nesta etapa do mestrado você conduziu sua primeira pesquisa que incluiu, entre os sujeitos avaliados, nove sócios da UDV. Do que tratou este estudo?
Nas primeiras pesquisas feitas com sócios da UDV as pessoas relatavam benefícios do uso do chá. Diziam que antes se sentiam tristes, por exemplo, e que isso havia diminuído. Meu orientador sugeriu fazermos uma pesquisa metodologicamente rigorosa, com questionários, para avaliar se os relatos positivos refletiriam numa pesquisa quantitativa.
Selecionamos pessoas que estavam bebendo o chá pela primeira vez. Os voluntários passaram por uma avaliação psicológica entre um e quatro dias antes de beberem o chá, e depois comparamos os resultados de outras avaliações feitas até seis meses depois. Este foi o primeiro estudo em que a saúde mental das pessoas era avaliada antes e após a sua primeira experiência com o chá Hoasca. Foram analisados diversos aspectos, que incluíram os chamados sintomas psiquiátricos menores, que incluem depressão e ansiedade, mas também qualidade de vida, alteração de consciência e mudança de atitudes, entre outros.
Como era o campo de pesquisas sobre ampliação de consciência e saúde mental naquela época?
Nos anos 1990, a modificação de consciência e o uso de substâncias com esse fim era considerado um comportamento patológico. Ainda é visto assim hoje por muitas pessoas, mas naquela época isso era ainda mais forte. E até hoje a DMT (substância presente no chá, responsável por algum dos seus efeitos sobre a consciências) é considerada uma droga de abuso sem fins medicinais.
O que os resultados mostraram?
Após uma única dose, os participantes relataram uma queda abrupta dos sintomas psiquiátricos menores. Uma melhora repentina. Olhei os resultados com surpresa e ceticismo. Cheguei a pensar se as pessoas estavam de alguma forma distorcendo a realidade sobre essas melhoras. Tanto que no artigo, na parte da discussão dos dados, eu sugeri hipóteses como autossugestão, questionando se aquela melhora seria um efeito real do chá. Hoje esses resultados têm muito mais credibilidade, porque de lá para cá outros estudos encontraram dados semelhantes. Hoje esta propriedade do chá está sendo estudada mais a fundo.
Já nos anos 2000 você conduziu junto à UDV uma pesquisa em larga escala, da qual participaram quase duas mil pessoas de dez estados. Qual era o foco?
Neste estudo, medimos o uso de álcool, tabaco e drogas. Constatamos que o tempo de permanência na União do Vegetal é inversamente proporciona ao uso de álcool de drogas. Ou seja, quanto mais tempo uma pessoa tem como sócia da União do Vegetal, menor é o uso que ela faz de álcool e drogas. Também observamos que o uso de álcool e tabaco pelas pessoas sócias da UDV é muito inferior à média nacional.
Esses resultados podem ser atribuídos às propriedades químicas do vegetal?
O que os dados obtidos através de vários estudos estão mostrado é que há sim um efeito. Isso aparece, por exemplo, pelas pesquisas de um grupo que trabalha comigo aqui na UESC, que utiliza camundongos como modelos animais para observar os efeitos do chá usando. Esses estudos mostram que o vegetal tem um efeito protetor contra uso de substâncias aditivas. Mas há outros elementos.
Por exemplo, os adeptos do Santo Daime também bebem menos álcool, em relação à média nacional. Porém, certas correntes do Santo Daime fazem uso de cannabis e tabaco em seus rituais. Na UDV isso não é observado. Ou seja, entre os grupos que usam o chá, podemos encontrar padrões distintos nessa questão. Há uma combinação do chá com o contexto onde ele é utilizado. Não o contexto geral do uso religioso geral, mas o contexto específico da UDV, que é especialmente rigorosa nesse ponto.
Eu acredito que, em se tratando da UDV, o que ocorre é uma combinação do chá com a doutrina. Perguntei a um pesquisador americano que atua na área a quais grupos de lá se poderia comparar essa visão da doutrina da UDV sobre álcool e drogas. Ele comparou com os grupos mais rigorosos de lá, como a igreja Batista, por exemplo.
Você diz que começou suas pesquisas neste campo motivado pela possibilidade de uso da ampliação de consciência como uma ferramenta de promoção de saúde. Esse uso menor de álcool, drogas e tabaco pelos sócios da UDV pode se percebido como um indicativo de saúde mental? Ou não necessariamente?
Olha… Sim. Tabaco e álcool são drogas muito deletérias. Nesta pesquisa, além do uso dessas substâncias, analisamos também a dependência delas. O álcool é uma droga que quando usada num contexto de abuso, é muito devastadora. As pessoas não percebem porque seu uso é legal. Mas é uma droga pesada. E o tabaco fisiologicamente também é muito perigoso. Então, sim, o não uso de tabaco e álcool pode ser considerado um indicador de saúde.
Por fim, na sua terceira pesquisa, você estudou sócios da UDV residentes nos Estados Unidos. Pode explicar o trabalho?
Esse estudo comparou pessoas da UDV nos EUA com integrantes de grupos religiosos ativos, protestantes e católicos. Esse uso da comparação entre pessoas, chamado de casos controle, é um recurso metodológico que inclusive havia sido empregado em pesquisas anteriores. Comparou-se, por exemplo, pessoas que usam o chá com pessoas que não usam. Mas nestes estudos anteriores a variável da religião não havia sido controlada de forma efetiva. Sabemos que o fato de possuir ou não uma religião influencia a saúde mental, e muito. Então, lá nos EUA, eu fui a cultos protestantes e missas católicas para recrutar pessoas que tivessem mais ou menos a mesma idade e nível socioeconômico, além do mesmo sexo, dos sócios da UDV que haviam sido voluntários para o estudo.
Na avaliação, empregamos medidas chamadas de neuropsicológicas, que são capazes de medir a cognição da pessoa. Isso inclui capacidade de atenção, capacidade de memória, organização e planejamento. Também analisamos estados de humor e uso de drogas e álcool.
Em termos neuropsicológicos, a pesquisa não revelou diferenças, pois o grupo controle era formado por pessoas também muito saudáveis. No campo de álcool e drogas, observamos que o uso passado de álcool e drogas era mais comum entre os sócios da UDV, em comparação ao grupo controle. Porém quando se analisava o uso recente dessas substâncias, essa relação se invertia, ou seja, era menos comum entre as pessoas da UDV. Então, mais uma vez, isso sugere que há um fator protetor, terapêutico pelo uso do chá na UDV em relação a álcool e drogas.
Como parte dos estudos, também fizemos uma comparação entre os dois grupos em termos de traços de personalidade. Os sócios da UDV se mostraram mais criativos e abertos a experiências novas. Também demonstraram uma pontuação menor nos aspectos ligados a depressão e confusão, e uma pontuação maior em termos de amabilidade, em ações pró-sociais. E houve uma pontuação bem semelhante entre os dois grupos no quesito que chamamos de conscienciosidade, que tem a ver, por exemplo, com disciplina e a capacidade de cumprir suas tarefas. Mas penso que, se a amostra fosse maior, talvez o grupo da UDV obtivesse uma pontuação mais elevada também nesse quesito.
Você atua no campo do estudo dos efeitos da Hoasca sobre a saúde mental há cerca de 25 anos já. O que você acha que a pesquisa já conseguiu demonstrar com confiança ao longo deste período?
Um primeiro aspecto é que não foi encontrada evidência científica de algum efeito deletério causado pelo chá que justificasse que o Estado ou alguma agência regulatória proibisse seu uso com parte de uma prática religiosa. Não há evidências que embasem um ataque por parte das autoridades aos grupos religiosos.
Outro é que o vegetal tem um potencial enorme para o tratamento de algumas condições psiquiátricas que ainda é pouco explorado, especialmente transtornos associados a abuso de substância, que são patologias cujo tratamento é muito difícil. Também há potencial para o tratamento de depressão e ansiedade e, mais recentemente, há evidências de que podem haver benefícios para tratar demências.
Agora, em determinadas condições o uso é contra indicado do ponto de vista médico-científico. Se a pessoa tem alguma condição prévia, como esquizofrenia, não é indicado que ela beba o chá. Se uma pessoa tiver um transtorno mental grave, o chá pode precipitar, por exemplo, um episódio de surto psicótico. A pesquisa séria também entra no sentido de desfazer uma visão romantizada do chá, no sentido de enxergá-lo como uma panaceia capaz de curar qualquer tipo de patologia. Isso não é verdade.
E também há certos elementos ligados à organização dos grupos que podem gerar efeitos adversos. Indivíduos mal-intencionados podem querer se aproveitar da alteração no estado de consciência que o chá induz para praticar algum abuso e explorar, seja por meio sexual ou financeiramente, pessoas menos experientes ou que estejam numa condição mais vulnerável por conta do seu estado de saúde.
Então há, sem dúvida, esse potencial terapêutico. Porém esses dois aspectos devem ser bem pensados: por um lado, seleção de quem vai usar, que envolve as condições psicológicas; por outro, condições sociais.
Pablo Gonçalves
Confira abaixo os links para todos os artigos citados no texto.
Assessment of Alcohol and Tobacco Use Disorders Among Religious Users of Ayahuasca
Psychological and neuropsychological assessment of regular hoasca users
2 Comentários em “Olhar psicológico para os efeitos da Hoasca tem ajudado a mapear benefícios do uso religioso do chá para a saúde mental”
Esclarecedora
Muito boa e oportuna matéria. Grato